AI Escritas
Mais pensamentos soltos sobre AI. Desta vez sobre o ChatGPT.
01. A inteligência artificial vai ter um efeito mais dramático sobre os profissionais do texto do que sobre os da imagem.
02. Nunca se tinha industrializado a produção de texto, mas apenas a sua reprodução. O que a imprensa fez foi isso: reproduzir mecanicamente um texto. O que se podia reproduzia era a imagem do texto.
03. Uma das hierarquias mais fortes é a que coloca o texto acima da imagem. Para o comprovar, basta um exemplo simples: «pessoa de palavra» significa fiabilidade; «pessoa de imagem» significa impostor.
04. O exercício do poder político é tradicionalmente exercido por pessoas com formação em áreas ligadas à palavra (direito, humanidades, etc.) Mesmo ao nível «civil», o domínio da palavra é sinal de hierarquia (escrever bem, não dar erros, etc.)
05. Uma tecnologia de produção de texto como o ChatGPT vem abalar estas hierarquias.
06. Alguém como Ronaldo pode contratar um GhostWriter para escrever a sua autobiografia. Com o ChatGPT e afins, qualquer pessoa pode fazer o mesmo. Pode enfiar os dados crus da sua vida, o seu cv e pedir para tornar aquilo numa narrativa.
07. Benjamin escreveu que a reprodução mecânica de obras de arte destruía a sua aura. Retirava-as em definitivo do domínio da tradição. Estas tecnologias têm o potencial de fazer o mesmo com a escrita.
08. Podem pôr em curto-circuito o derradeiro mecanismo de distinção estética burguesa que é a escrita.
09. Do lado da arte, há muito que o mecanismo equivalente foi desmantelado: a ideia que a arte é saber pintar ou esculpir, e saber o que é uma boa pintura ou um bom desenho.
10. Esse desmantelamento sucedeu porque a imagem se tornou generativa muito antes do texto entrar pelo mesmo processo. Apesar de tudo, a literatura do século XX ensaiou inúmeras vezes uma literatura generativa como um mecanismo de emancipação (a poesia concreta, os surrealistas, o oulipo, etc.)
11. Há um potencial de emancipação nestas tecnologias. Como de costume, está escondido num campo minado de interesses e preconceitos.
12. Parte do que nos repulsa na AI é o seu lado desumano.
13. Mas a outra parte é deixar de se conseguir distinguir a pessoa «bem formada», «letrada». De «palavra».
Por Mário Moura
01. A inteligência artificial vai ter um efeito mais dramático sobre os profissionais do texto do que sobre os da imagem.
02. Nunca se tinha industrializado a produção de texto, mas apenas a sua reprodução. O que a imprensa fez foi isso: reproduzir mecanicamente um texto. O que se podia reproduzia era a imagem do texto.
03. Uma das hierarquias mais fortes é a que coloca o texto acima da imagem. Para o comprovar, basta um exemplo simples: «pessoa de palavra» significa fiabilidade; «pessoa de imagem» significa impostor.
04. O exercício do poder político é tradicionalmente exercido por pessoas com formação em áreas ligadas à palavra (direito, humanidades, etc.) Mesmo ao nível «civil», o domínio da palavra é sinal de hierarquia (escrever bem, não dar erros, etc.)
05. Uma tecnologia de produção de texto como o ChatGPT vem abalar estas hierarquias.
06. Alguém como Ronaldo pode contratar um GhostWriter para escrever a sua autobiografia. Com o ChatGPT e afins, qualquer pessoa pode fazer o mesmo. Pode enfiar os dados crus da sua vida, o seu cv e pedir para tornar aquilo numa narrativa.
07. Benjamin escreveu que a reprodução mecânica de obras de arte destruía a sua aura. Retirava-as em definitivo do domínio da tradição. Estas tecnologias têm o potencial de fazer o mesmo com a escrita.
08. Podem pôr em curto-circuito o derradeiro mecanismo de distinção estética burguesa que é a escrita.
09. Do lado da arte, há muito que o mecanismo equivalente foi desmantelado: a ideia que a arte é saber pintar ou esculpir, e saber o que é uma boa pintura ou um bom desenho.
10. Esse desmantelamento sucedeu porque a imagem se tornou generativa muito antes do texto entrar pelo mesmo processo. Apesar de tudo, a literatura do século XX ensaiou inúmeras vezes uma literatura generativa como um mecanismo de emancipação (a poesia concreta, os surrealistas, o oulipo, etc.)
11. Há um potencial de emancipação nestas tecnologias. Como de costume, está escondido num campo minado de interesses e preconceitos.
12. Parte do que nos repulsa na AI é o seu lado desumano.
13. Mas a outra parte é deixar de se conseguir distinguir a pessoa «bem formada», «letrada». De «palavra».
Por Mário Moura
0 Comments:
Post a Comment
<< Home